O mundo está sempre a nos gritar que somos de carne e osso
Já passou da hora de gritarmos de volta
Pra onde vão os trens, meu pai? Para Mahal Tamí, Camiri, espaços no mapa, e depois o pai ria: também pra lugar algum meu filho, tu podes ir e ainda que se mova o trem tu não te moves de ti.
Hilda Hilst
Dias atrás senti saudade de mim. Foi um sentimento curioso, afinal, não tenho como fugir, estou aqui, como dizem: de carne e osso. E fiquei pensando então, que falta o mais importante nessa expressão. Que a equação deveria somar algo como 01 alma, 01 espírito ou 01 coração.
Como solução, comecei a pensar no caminho que deveria seguir para me encontrar. Abrir determinadas portas no cinema, seguir o canto de alguns álbuns por uma floresta densa, resgatar palavras afiadas para abrir uma clareira na mata me permitindo respirar. O pulmão voltando a inspirar devagar, criando correntes de vento que me guiariam até o lugar no qual estou escondida, encolhida, a me esperar.
Ouvi músicas que me escutaram por completo. Visitei autores que me leram sem questionar. Vi filmes que me assistiram - como verbo transitivo direto. Cerrei os olhos na escuridão e vi um brilhinho: eram meus olhos, pequeninos, assustados, encolhidos, a me esperar.
Talvez o brilhinho também seja esse fio de cabelo branco logo acima da minha testa, que atesta sua existência com vontade, insistindo em querer se mostrar.
De qualquer forma, eu me vi. Já com o cabelo branco, mas ainda encolhida dentro em mim, como acontece de vez em quando. Como acontece sempre que me afasto um pouco das minhas paixões, ignorando a bússola-coração que existe para poder me guiar, com seus pulsos aumentando quando estou olhando para onde preciso olhar.
Como acontece quando eu ignoro a matemática e acabo cortando da equação o que não era pra cortar: 01 espírito, 01 coração ou 01 alma. E lá ficam juntinhos, somados, que bonito: a carne e o osso - culminando em um resultado um tanto duvidoso.
Estamos juntas novamente. Sigo prometendo não me afastar de mim. Ainda que se mova o trem, ainda que se mova o mundo, ainda que se mova o outro. Ainda que eu precise cerrar os olhos para perceber que, às vezes, a luz que vejo à frente me sinaliza que estou na contramão. Ainda que eu precise refazer o caminho da vida, da trilha, da jornada. Ainda que a bússola decida me apontar que eu devo mudar o passo no qual sigo essa minha caminhada.
Ainda que o caminho seja difícil e me traga algum desconforto
Ainda que a brisa encoste nas encostas de mim
Que o vento bata de frente
Que o tornado me rodopie nesse salão que chamamos de vida, me tirando pra dançar - mesmo quando não quero, mesmo quando não há clima, seja vento ou ousadia, de ser alegre por rebeldia
O mundo está sempre a nos gritar que somos de carne e osso
E, às vezes, sarcástico como sempre, nos atravessa como se fôssemos fantasmas que flutuam como se a calçada fosse lava, não encostando no chão
Então caímos cantando
que também somos
01 espírito
01 alma
e 01 coração.
E talvez, nessa equação, não seja a carne nem o osso que nos gere o impulso necessário para levantar do chão. Talvez seja a falta de gravidade do espírito, a invisibilidade da alma e um pouco desse pulso, que nos mantém no mundo, físico e metafórico, de carne, osso e simbólico, que soa como um tambor que grita de volta: ainda que você se mova, Mundo, eu continuo - pulsando mais forte como resposta.
Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.
Ricardo Reis